quarta-feira, 9 de julho de 2014

2013 / ATRÁS DOS MONTES USAM MÁSCARAS


ATRÁS DOS MONTES USAM MÁSCARAS
Sobre “Máscaras” (de Noémia Delgado, 1976)
LFU 2a Edição Papel - Março 2013

Estou em Lisboa neste princípio de Fevereiro e o Carnaval quase passou por mim sem dar por ele. Na televisão, as actualizações diárias da austeridade parecem cortar o fôlego festivo às celebrações em directo. E se é nas épocas em que o espírito mais sofre que o corpo melhor se apercebe da fome de transe, é colectivo o febril ímpeto de evasão que agita por dentro o corpo de um país inteiro - e é Carnaval dentro da terra que treme. De lá de cima, de Trás-os-Montes, terra onde António Reis disse que era capaz de renascer (1), ecoam os últimos gritos de um chamamento antigo, um caos consentido que há milénios desordena corpos e gestos, que suspende a realidade do quotidiano para dar largas à diabrura que anseia por sair. Por esta altura, findam os rituais de Inverno com máscaras em algumas regiões de Trás-os-Montes, festas que que assinalam o ciclo de Inverno com a persistência de tradições que hoje podem prolongar-se do Dia de Todos os Santos ao Dia de Reis e, noutros casos, do Carnaval até à Quarta Feira de Cinzas.

“Logo após a revolução de 74, em contraponto ideológico, o Alentejo e Trás-os-Montes, regiões remotas e ainda arcaicas, tomarão os lugares de preferência, numa descoberta de raízes e na procura de uma renovação da identidade nacional. Também aqui reconhecemos uma tentativa de uma elite intelectual de recuperar uma ideia de nação através da identificação de uma cultura popular ancestral...” Leonor Areal, in “Cinema Português antes de 1974” (Vol. I)

Noémia Delgado filmou “Máscaras”, em Trás-os-Montes, poucos meses depois do 25 de Abril. Partindo das pesquisas etnográficas de Ernesto Veiga de Oliveira e de Benjamim Pereira (2), filma em Bragança e em várias aldeias de Trás-os-Montes, essencialmente ao longo do ciclo dos doze dias entre o Natal e o Dia de Reis, e pela época de Carnaval de 1975.  Em “Máscaras”, somos avisados pela locução de Alexandre O’Neill que estes são dias em que “as liberdades são consentidas por tradição” e partimos no encalce das fascinantes figuras dos caretos, dos chocalheiros, dos gaiteiros, dos mordomos, das madamas, dos reis, dos bispos e de outros mascarados, que cruzam a paisagem ao som e ao ritmo da juventude. São as energias que se encenam publicamente pela regeneração da comunidade, recebendo o novo ano que começa com auspícios fecundos. Nascidas das brumas e da agitação, do riso e do medo, novas personagens definidas sob máscaras cumprem-se como suposto em jogos simples de caos. E após a ebulição em que se suspende, a sociedade regressa à norma.

“A crença de que a máscara tem o poder de afastar certos perigos, um poder de exorcismo dos males que possam pairar sobre a aldeia.” Benjamim Pereira, Arquivos RTP (sobre a máscara do “Chocalheiro” na aldeia da Bemposta)

A associação entre o uso das máscaras e os rituais de morte remonta ao paganismo das origens do culto, e a sua categorização profana suplanta-se enquanto “elemento de ligação entre o mundo dos vivos e dos mortos, entre o homem e a divindade” (António Tiza). Significações agrícolas estão irredutivelmente associadas à sazonalidade dos ritos, mas dois mil anos sob a influência do cristianismo modelaram as festividades, hoje reveladoras de um encontro difuso que funde símbolos cristãos e pagãos. O que em parte explica a sua sobrevivência até ao século XXI, fazendo, por exemplo, coincidir os ritos de purificação ancestrais com o calendário católico.

“O direito a usar a máscara (do Chocalheiro) é leiloado todos os anos e os candidatos agem para cumprir uma promessa. O leilão é conduzido pelo mordomo, tem lugar na sua casa e é estritamente secreta. Os candidatos chegam de noite, furtivamente, pesadamente encobertos, e fazem a sua oferta em segredo. De seguida, misturam-se anonimamente com os grupos que estão a jogar às cartas dentro da casa ou saem. Por outro lado, o Chocalheiro comporta-se como um fora-da-lei, ignorando as convenções sociais e tudo o que é usualmente proibido, é-lhe permitido. Máscara e fato pertencem à comunidade e são guardados todo o ano na arrecadação da igreja, enfatizando assim a função social que se lhes atribui.” in dossier de produção de ‘Máscaras’

Como explica Paula Godinho (3), paradoxalmente, é a máscara do “Chocalheiro” (4) a mais temida e a mais sacralizada. O direito a envergá-la implica um duplo sacrifício que é tanto “monetário”, resultante de um leilão, como “de sangue”, obrigando ao esforço de carregar cerca de 6Kg sobre o rosto, ao longo de vários dias (sai a 26 de Dezembro e a 1 de Janeiro).
De identidade oculta, a máscara liberta - e um ímpeto catártico explode no folião, entre os próprios excessos. Em algumas aldeias recitam-se as loas, quadras em tom satírico declamadas publicamente por um careto, uma forma jocosa de crítica social recuperada após o 25 de Abril e destacada no filme de Noémia Delgado. Com o renovar do ano, a participação dos jovens solteiros da aldeia (tradicionalmente restrita ao sexo masculino) na “festa dos rapazes” corresponde a um rito iniciático: a inauguração de um novo ser após o entrudo, emancipação onde a juventude se substitui pela idade adulta.
Porque são os jovens rapazes os tradicionais protagonistas destas celebrações, algumas das alterações demográficas decorridas das vagas de emigração e da incorporação nos contingentes da guerra colonial, já tinham modificado ou extinto certas faces dos festejos transmontanos quando a câmara de Noémia Delgado chegou. Assim, “Máscaras” constrói-se nas linhas do documentário e da reconstituição etnográfica, com o poder de recriar personagens como a “Morte” e o “Diabo” (que integravam os rituais da Quarta Feira de Cinzas, em Bragança) e até de ressuscitar festividades, como a “Festa dos Rapazes”, esquecida na Aldeia de Varge. Nesta altura, o reconhecimento atento do cinema das especificidades tradicionais de cada aldeia e a devolução às comunidades das suas próprias representações, revelou-se um poderoso agente activo na reconstrução da identidade tradicional transmontana, impulsionando um orgulho interno que renova o fôlego das tradições.
Em “Máscaras” caminhamos sobre um mapa de variações dos ritos. Em Podence, os caretos imaginam casamentos arranjados, introduzindo os rapazes a um princípio matrimonial que acontece noutras geografias europeias. Ridicularizam situações existentes e distribuem castigos pelas raparigas, a ser cumpridos na Quarta Feira de Cinzas. Noutras zonas, para admissão no clã dos homens adultos, os adolescentes devem pagar um tributo em vinho e ser testados na companhia dos homens num banquete que se estende até de madrugada. Em Varge, onde a Festa dos Rapazes decorre essencialmente no dia de Natal e no Dia de Santo Estevão (patrono dos rapazes), cabe aos rapazes ir à lenha no Dia de Todos os Santos para alimentar a Fogueira das Almas no dia 31.

“ O reino maravilhoso de Torga, situado no cimo do país “como os ninhos ficam no cimo das árvores para que a distância os torne mais impossíveis e apetecíveis”, daria porém nesse seu excelso afastamento, ingredientes para as mais variadas visões... ” António Preto in “O Cinema em Trás-os-Montes”

No Inverno de 2010, juntava-me a um pequeno grupo de estudantes de Antropologia Portuguesa (FCSH-UNL) e, de saco-cama às costas, rumávamos a Ousilhão, Trás-os-Montes, para perceber quem eram os jovens transmontanos que, no século XXI, ali prosseguiam a tradição ancestral. Encontrámos essencialmente jovens como nós que, a viver, estudar e trabalhar fora da aldeia, pelo orgulho da celebração das suas raízes ciclicamente regressam como filhos e netos da terra, para fazer a festa que revitaliza a comunidade desertificada (que perde as suas gentes desde os anos 60). A participação já não é exclusiva dos rapazes solteiros do nordeste: raparigas e crianças hoje também se vestem de caretos, o que modifica decisivamente o papel de diabolismo inofensivo associado à provocação do feminino.
Em 1976, Noémia Delgado mostra ainda como a sobrevivência dos ritos incorpora elementos externos às tradições locais, trazidos pelos emigrantes; os novos hábitos, o estilo aberrante das novas casas entre as aldeias transmontanas, objectos quotidianos de plástico que substituem os de madeira, de latão e de pele. A actualização das festas depende hoje do apreço local à autenticidade das suas tradições, transformando-as em emblemas das respectivas aldeias. Assiste-se ainda a um fenómeno de exportação de alguns dos traços festivos que privatiza os rituais, promovendo-os enquanto roteiros turísticos.

“ … a passagem da câmara por lugares ainda pouco moldados pela força trituradora da máquina audiovisual teve consequências notórias. Além do exemplo extremo do renascimento da festa dos rapazes – que se ficou a dever a uma reconstituição do ritual, na aldeia de Varge, ocorrida a pedido da cineasta Noémia Delgado – há que enfatizar e saudar a importância da obra de Reis/Cordeiro, cuja envergadura artística, não obstante a relativa confidencialidade dos filmes de sua autoria, catapultou Trás-os-Montes para o patamar de território venerado e mítico...” Regina Guimarães e Saguenail in “Qualquer Português Médio”

Região mais longínqua de Lisboa, Trás-os-Montes foi retratado como a nova recordação de uma identidade mais verdadeira, longe da História, imune ao tempo. Atrás dos montes está um país novo, um país desejado que, após o 25 de Abril, é palco para a representação de valores que faltam ao cinema novo. Longe das narrativas urbanas, as paisagens, evocadas com dramatismo e imponência, são lugar de solidão e de silêncio, de simplicidade e de pobreza. A câmara procura a poesia, o numinoso, e à força de buscar uma realidade mais real, replica o elogio dos ideais com que parte em quadros de mitos e de fantasia.
Para lá de Noémia Delgado, esta terra fria, o nordeste montanhoso de Trás-os-Montes, foi presença no cinema de Oliveira e de João César Monteiro mas foi com António Reis e Margarida Cordeiro que conheceu o seu retrato mais emotivo, revisitado com obsessão. No seu magnífico “Trás-os-Montes” (também de 1976), tido como uma das principais etno-ficções portuguesas, os elementos arcaicos protagonizam um mistério que a tudo envolve, numa aura de eternidade que percebe o carácter pré-cristão dos hábitos e crenças que ali persistem.

“Quando se diz que eles são druidas, não há aqui nenhum exagero nem nenhuma liberdade poética. Se os ouvires a falar das árvores, do modo como as amam... há aí algo de muito antigo que não tem nada a ver com o cristianismo.” António Reis (1) sobre o seu filme “Trás-os-Montes”

“O mito é o da unidade de um reino maravilhoso, recolhido numa admirável e frágil autonomia. Talvez pela partilha deste sentimento, vários trabalhos cinematográficos, embora assinados por diferentes cineastas, escolheram a panorâmica que acompanha o recorte dos montes no horizonte...”  João Sousa Cardoso in “O maravilhoso”

Entre os montes mora Pascoaes (5), mora a saudade do país que não nasceu. Entre os montes mora a simplicidade de um deus-corpo de todas as coisas vivas. E as vistas alargam-se em pureza e, sem pendores nacionalistas, exalta-se em nobreza não tanto o português, mas antes o humano.

“O cinema aí realizado foi quase sempre um acto de resistência e achou em Trás-os-Montes as figuras privilegiadas duma resistência económica, política e cultural...” João Sousa Cardoso in “O maravilhoso”

Por caminhos distintos, “Máscaras” e “Trás-os-Montes” avançam na direcção da recuperação da cultura popular portuguesa, desejo que acompanhou o processo revolucionário que se seguiu ao 25 de Abril. Filmes belíssimos que ajudariam a construir a imagem de um património, e que abririam um vislumbre do que é magnífico em Trás-os-Montes como quem abre as portas de um templo novo.
Mas são também estudos acerca de um abandono político – a persistência de um modelo social arcaico (nos quais tradições como a “Festa dos Rapazes” desempenham um papel contextual de construção do género masculino) e uma autonomia colectivista pouco hierarquizada e assente na divisão do trabalho garantem “o pão e o gado”, a base do funcionamento de um sistema agrícola e pastoril de subsistência.
O recurso à emigração confirma as duras condições de vida na paisagem granítica e, ainda que a arte do cinema possa pontualmente derrubar os preconceitos implicados na conotação do “Portugal rural”, a ênfase no desenvolvimento associado às cidades esgota as possibilidades da vida fora delas. O que testemunhei em Ousilhão.
Guardo destes montes puros momentos de fascínio. Fomos para indagar que santos escapam às ruas estreitas do nosso quotidiano em Lisboa, e voltámos com fome de magia antiga, com fome de árvores reais, com fome de nascer, com fome de tudo. Lá, o sol está mais perto e os braços estão mais abertos e  os nomes próprios valem mais e  a loucura é mais louca e há mil pequenos mundos a abrir-se à atenção. Lá, acaba o Carnaval que inquieta os montes e acorda os mortos, que faz tremer o chão e despontar os frutos. E a toda a terra, a Primavera confia melhor a sua entrada, porque lá atrás dos montes, eles usam máscaras.

Sabrina D. Marques


NOTAS :

(1) António Reis em entrevista a Serge Daney e Jean-Pierre Oudart, Jornadas Cinematográficas de Poitiers, 7-14 de Fevereiro de 1977

(2) Noémia Delgado lê em 1973 o texto “Máscaras Portuguesas” de Benjamim Pereira (considerado o “pai” dos estudos antropológicos em torno das máscaras)

(3) Paula Godinho, professora de Antropologia Portugues Contemporânea (FCSH-UNL) e autora de “Máscaras, Mistérios e Segredos”, 2012

(4) A Máscara do Chocalheiro da Bemposta, a mais atemorizante de todas, aparenta uma figura tauromórfica que justapõe vários elementos significantes : nas pontas dos chifres, duas laranjas espetadas; cai-lhe do "queixo uma barbicha de bode; na parte da nuca pende-lhe uma bexiga de porco cheia de vento; na testa tem um disco e, escorrendo pela face, uma pequena serpente; na mão segura uma tenaz e mostrando uma serpente de grande porte rodeada à cintura ".

(5) Teixeira de Pascoaes, poeta da saudade: “...Ó natureza, qualquer coisa existe | De íntimo entre o meu peito e a tua essência! | Se medito, se canto, se estou triste, | Eu sinto, dentro de mim, tua existência...”

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